ELI MAGALHÃES
Certa feita, em um debate sobre a situação do movimento estudantil e o papel da União Nacional dos Estudantes (UNE), no ano de 2005, na Universidade Federal de Alagoas, um companheiro iniciou a atividade de maneira inusitada. Referindo-se a Gabriel García Márquez, em seu clássico Crônica de uma morte anunciada, arrematou que, como o escritor colombiano inicia seu livro, ele gostaria de iniciar o debate declarando a morte de seu personagem principal: a UNE.
Passados quase seis anos, é possível ser vista a seguinte notícia em inúmeros sítios da internet: UNE pede apoio a mantenedores de instituições de ensino superior particulares ( http://www.abmes.org.br/abmes/noticias/detalhe/id/230). Durante a leitura da matéria, encontra-se a seguinte passagem:
“Chagas [presidente da UNE] afirmou que a UNE está empenhada em fazer com que a educação possa se desenvolver no Brasil e ressaltou que muitas das batalhas têm sido vencidas junto com o setor privado. 'Nós sabemos do papel que o ensino particular tem desempenhado historicamente na estruturação da educação brasileira', reforçou, complementando que já foram superados alguns equívocos que impedem a visão clara da real contribuição do setor neste contexto”.
Ora, o leitor deve saber que uma Instituição de Ensino Superior privada é, na verdade, uma empresa. Uma empresa cujo objeto de atividade é a prestação de serviços na área de educação, é óbvio, mas ainda assim, uma empresa. Como se sabe, o objetivo principal de uma empresa (repetimos propositalmente este termo), pela sua própria manutenção, é a obtenção de lucro. O lucro, por sua vez, é também privado. E em um país em que 80% das matrículas no ensino superior estão no setor privado, e apenas 20% no setor público, este lucro não é pequeno.
A única contribuição do setor privado à educação nacional é a da transformação daquilo que é estabelecido como um direito fundamental de todos os cidadãos em mercadoria. A educação é garantida a você, contanto que tenha dinheiro para pagar por ela. Assim, no Brasil, menos de 15% da juventude tem acesso ao ensino superior. Que espetacular “contribuição”!
A UNE, no entanto, a reconhece. Não só busca parceria com a ABMES (Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior), como, assim diz a matéria de que tratamos, pede para que o seu 52º Congresso Nacional, seja financiado por ela.
Historicamente o movimento de luta pela educação combate pela garantia de uma educação pública universalizada e de qualidade. Ora, porque uma associação de mantenedoras de instituições privadas financiaria tal luta? É um completo contra senso doar fundos para aquele que declara uma luta feroz contra você. Ainda que não passe de uma proposta, que partiu da própria UNE, a ideia de financiamento de seu principal espaço político nacional por parte do setor empresarial da educação significa duas coisas simples: primeiro, a entidade abandonou completamente sua independência financeira do grande capital e especialmente do capital adquirido através da venda de um direito o qual ela deveria defender; segundo, o abandono desta independência financeira é causa e consequência do abandono de sua independência política, para permanecer na luta pela qualidade e garantia da educação para todos, em defesa da educação pública.
Passados seis anos, então, parece-nos que a forma de iniciar o debate fazendo referência à García Márquez continua válida. A UNE morreu. Aquela União Nacional dos Estudantes, que lutou, durante os períodos mais negros da ditadura militar, contra o governo repressor e seus planos de desbaratar completamente a educação pública no país através dos acordos MEC-USAID, não existe mais infelizmente. Aquela União Nacional dos Estudantes que levantou a palavra de ordem “O Petróleo tem que ser nosso!” pela completa estatização do petróleo nacional, hoje declara-se apoiadora incondicional do governo que organiza leilões das jazidas nacionais para as Big Oil's mundiais. Enche a boca para falar que defende 50% do Pré-sal para a educação, mas esquece de dizer que este 50% é apenas de seu fundo social, que não passa de míseros 9% da riqueza que ele representa, ficando 91% para a burguesia.
A UNE de hoje, recebe R$ 10 milhões do Governo Federal e assina embaixo de todos os seus projetos privatistas para a educação. É a UNE que apoia o financiamento público para universidades privadas com o ProUni (através da isenção de impostos de universidades privadas, já foi gasto o dobro do orçamento da educação e da saúde juntos através deste programa, que não foram investidos no setor público); a UNE que apoia a expansão precarizada das universidades federais com o ReUni; a UNE que apoia a avaliação punitiva e ranqueadora do SINAES (que inclui o ENADE, uma cópia piorada do Provão de FHC) e um longo etc. E hoje, nos Congressos da UNE, existem mais falas de ministros e secretários do governo, do que de estudantes e trabalhadores. E a entidade gasta mais tempo em reuniões de gabinete, do que na luta de rua pelos direitos dos estudantes.
Portanto, a UNE morreu, mas para a luta dos estudantes. Ela continua existindo, com bastante força inclusive, mas do outro lado do movimento pela educação. Apoiando toda a política de reforma universitária que foi implementada durante dois mandatos de Lula e que continua com o Plano Nacional de Educação de Dilma.
Frente a isto, em 2009 surge a Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre. A ANEL é um acúmulo de um setor do movimento que desde 2003 rompe com a União Nacional dos Estudantes e declara-se independente dos governos, de suas políticas e de seu dinheiro. O objetivo principal da entidade é a recuperação da autonomia do movimento estudantil e sua reorganização para o combate em defesa do direito à educação pública, gratuita e de qualidade. No último feriado de Corpus Crhisti, de 23 a 26 de Junho, foi realizado o seu primeiro Congresso Nacional na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, quando a entidade completava dois anos de existência.
Durante o Congresso, foram feitos debates e propostas para a atual situação do movimento estudantil nacional. Ele inicia com um balanço positivo dos dois anos de atuação da ANEL. Neste período, a entidade tocou campanhas importantes como de solidariedade às vítimas do terremoto do Haiti em conjunto com a retirada das tropas brasileiras que ocupam militarmente o país; pelo Fora Sarney, envolvido com casos de corrupção, e pelo fim do Senado; pela organização de um dia de luta nacional contra o aumento das passagens de transporte público; pela criminalização da homofobia etc. Recentemente, a ANEL-RJ esteve intimamente envolvida com a luta dos bombeiros unificada com aquela dos professores do estado, que chegou a mover 50 mil pessoas no Rio de Janeiro. A ANEL-AL esteve entre as principais entidades das mobilizações pelo Fora Téo, contra o governo tucano do estado, com passeata de quase 2 mil pessoas. A ANEL-RN segue firme na luta pelo Fora Micarla. E estes são apenas alguns exemplos.
O Congresso reafirmou os quatro princípios da entidade, que permitiram que estas campanhas pudessem ser tocadas: ampla democracia interna; aliança com a classe trabalhadora; independência financeira; e ação direta. As falas de entidades convidadas ao evento confirmam o compromisso da ANEL com as lutas dos trabalhadores e de todos os explorados e oprimidos. Durante os debates, os estudantes presentes puderam receber saudações de sindicados e movimentos como o ANDES-SN, o MST, o MTST, o comando de Greve dos trabalhadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do sindicato da construção civil de Fortaleza, da CSP-Conlutas, sem falar em saudações internacionais de estudantes participantes do movimento 15-M espanhol, responsável pelas recentes ocupações de praças no país, de um estudante suíço que fez um relato sobre as lutas da juventude europeia como um todo, estudantes argentinos que participaram do recente estudiantazo em 2010, com ocupação da Universidade de Buenos Aires, de participantes da 3ª Intifada Palestina, além do relato da própria militante enviada pela ANEL para a cidade do Cairo no Egito, Clara Saraiva. Foram pontos fortes as saudações feitas pela professora Amanda Gurgel e por uma das lideranças do movimento dos bombeiros no Rio de Janeiro, o Cabo Daciolo.
Os debates foram organizados em plenárias e grupos de discussão e decorreram com bastante democracia e ampla abertura de participação dos estudantes. Nem sempre foram calmos, mas ocorreram mesmo momentos de polêmicas acaloradas. O tema do apoio aos bombeiros chegou a dividir o plenário, ficando uma ampla maioria na defesa do apoio, enquanto a minoria, organizada em torno do bloco Anel às Ruas (algo próximo a 100, dos 1700 participantes), defendia uma posição de contrariedade ao apoio à luta da categoria combinada com uma oposição a Sérgio Cabral.
Este contudo, não foi o principal tema do congresso, mas cremos que outros três foram de importância capital: a aprovação e organização de uma campanha nacional de exigências de 10% do PIB para a educação já e contra o PNE de Dilma; as resoluções que denotam a preocupação dos estudantes da ANEL com a necessidade de trabalho de base, revertendo anos de atraso deixados pela UNE neste campo, numa luta audaz pela reconstrução do movimento estudantil brasileiro em cada universidade e escola do país; as resoluções resultantes dos debates acerca do combate às opressões como racismo, machismo e homofobia, que foram temas acerca dos quais os estudantes dedicaram parte considerável das discussões, com direito a atos políticos durante o próprio congresso contra o machismo e a homofobia.
Para além da programação oficial, muitos eventos eram realizados paralelamente, nos espaços de folga. Foram reuniões de estudantes por cursos, que discutiram os problemas específicos de suas áreas; reuniões de coletivos e bancadas; lançamentos de livros; palestras sobre a situação internacional etc. Dentre esta miríade de atividades, nos interessou particularmente o lançamento do livro Sociedade de classes, direito de classes, de Juary Chagas. A atividade foi construída em um dos espaços vagos da programação, logo após um dos almoços. Juary, que lançou seu livro pela Editora Sundermann, apresentou em linhas gerais sua obra. Seu discurso foi acompanhado por um punhado de estudantes de direito que levantaram temas de debates como o papel do direito na dominação dos oprimidos, os equívocos das estratégias reformistas que se limitam na luta por direitos, a necessidade de se pensar o direito na transição para o socialismo. Também acompanhou o debate a professora Amanda Gurgel, amiga e camarada que milita no mesmo estado do autor do livro. Após o debate, os estudantes de direito aproveitaram para fazer uma reunião para a discussão de problemas de seus respectivos cursos.
Na relatoria das resoluções da plenária final do Congresso da ANEL, o leitor poderá encontrar inúmeros outros pontos relevantes de discussão. Seria impossível nos limites deste texto comentar todas as propostas aprovadas, que incluem temas como: democratização das comunicações no país; luta contra o agro negócio; luta em defesa do meio ambiente e contra o Código Florestal de Aldo Rebelo (PCdoB e ex-diretor da UNE); contra a criminalização dos movimentos sociais (debate que contou com a presença de militantes presos no Rio de Janeiro durante a visita de Obama); pela construção livre da arte e cultura e contra a lei Rouanet; a preocupação com um esporte livre do capital e voltado para a realização humana, como não acontece com os mega eventos que vêm sendo preparados como a Copa do Mundo e as Olimpíadas etc.
Recentemente, a professora Amanda Gurgel recusou um prêmio oferecido pelo Pensamento Nacional de Bases Empresariais (PNBE), que a titulava como importante brasileira na construção da educação. A recusa da professora se deu por um motivo simples: não se luta pela educação ao lado dos empresários que lucram com a venda dela. O recado da ANEL é, portanto, muito claro. O dinheiro e o apoio do Governo Federal e da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior que fique com a UNE. Os estudantes que constroem a ANEL ficam com Amanda Gurgel, com os trabalhadores que lutam em Jirau, na USP, e em todo o país, com a juventude revolucionária do mundo árabe, com a juventude em luta da Europa e do resto do mundo, com os palestinos que se enfrentam com a política reacionária de Israel, e, especialmente, com a luta por uma educação efetivamente pública, de qualidade e universal. Agora é voltar para as universidades, para as escolas, e enfrentar o marasmo que foi deixado pela UNE. É hora de sacudir o movimento estudantil.
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